A professora Milena Magalhães, responsável pela Coluna Hiatos do Jornal Portal Ilhéus, fala sobre Americanah, onde Chimamanda Ngozi Adichie cria uma história de amor para refletir sobre as constituições identitárias em deslocamento. Vale leitura!
Por Milena Magalhães
O escritor Milan Kundera, em seu livro Testamentos traídos, diz que todos os romances procuram responder à pergunta “O que é um indivíduo?, em que reside sua identidade?”. O romance Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie, a escritora nigeriana cuja literatura mais atravessou as fronteiras de seu país, confirma que a frase de Kundera continua sendo uma boa definição desse gênero, mesmo em uma época, como a nossa, em que o fim da ideia de indivíduo é uma constante.
A identidade sobre a qual se fala está marcada, desde o início, pelo signo da estranheza. O acréscimo da letra “h” na palavra “americana” borra a identificação da protagonista desse romance, deixando de ser uma letra muda para ser a representação do prolongamento do desejo de pertença a um lugar. Ifemelu é uma nigeriana que vai terminar seus estudos nos Estados Unidos, devido ao descaso da política nacional com as universidades, e por lá fica durante quinze anos, quando decide voltar a seu país. Ela é, portanto, uma estrangeira em solo norte-americano. Assim, o “h” representa, na grafia, o que os nigerianos consideram ser um corte identitário daqueles que saem da Nigéria e voltam “americanizados”, tal como na música de Carmem Miranda, Disseram que voltei americanizada. É um sinal de menos, pejorativo, acusatório. Diferentemente da música, as mais de 500 páginas do romance de Chimamanda, lançado em 2014, mas ainda hoje uma referência, considerado a obra-prima da autora, não é uma afirmação da identidade. O traço que se impõe é o da interrogação. Mais do que afirmar uma identidade fragmentada, produzida pelo deslocamento para um ambiente historicamente hostil com o estrangeiro, ainda mais se for uma estrangeira negra, Americanah aponta para uma cisão que é mais ambígua, mais difícil de ser catalogada, porque dá aos países o mesmo tratamento, numa espécie de desidealização sistemática de suas culturas, realçando as violências que sustentam conceitos como os de nação e nacionalidade.
![O longo outono das perplexidades [por Milena Magalhães] chimamanda ngozi milena magalhaes ufsb americanah 1](https://www.portalilheus.com.br/wp-content/uploads/2021/04/chimamanda-ngozi-milena-magalhaes-ufsb-americanah-1.jpg)
Os Estados Unidos e a Nigéria, e também a Inglaterra, passam a ser lugares da falha, alheios às necessidades dos indivíduos: subjugados, constantemente expulsos, seja pela falta de documentos, seja pela dificuldade de condições dignas de sobrevivência. A ideia de lar não existe nem lá nem cá. Apesar das inúmeras passagens de deslocamento pelas cidades – ônibus, metrôs, trens, carros –, são nas imagens do alto, quando se pode ver uma cidade como se estivéssemos fora dela, que fica mais evidente que não há apaziguamento possível. As ruínas dos destroços civilizatórios moem não apenas os sonhos, mas tudo aquilo que constitui os sentidos de origem e identidade.
Nem por isso os países se igualam. A marca da diferença mais à vista diz respeito, justamente, aos sentidos dados ao ser homem negro, ser mulher negra. Enquanto nos Estados Unidos e na Inglaterra as questões de raça e classe determinam ferozmente as violências cotidianas resultado da perpetuação do preconceito racial; na África, o sistema de classes define com igual ferocidade os lugares possíveis de apropriação, que resultam, na maioria das vezes, em expropriações. Não à toa Obinze, o grande amor de Ifemelu, após a experiência malograda no exterior, ascende socialmente não apenas como construtor, mas também como especulador em busca de terrenos cujo valor é sempre uma aposta, às custas dos escombros sociais da grande Lagos, a capital nigeriana.
O fato de discutir todas essas questões e, ainda assim, ser um romanção em que a história de amor de Ifemelu e Obinze é o grande fio condutor faz de Americanah um livro excepcional, cuja superfície do enredo sustenta uma das mais difíceis crenças: a de que o amor pode ser o que permanece, quando tudo muda, quando os sucessivos acontecimentos parecem assinalar um distanciamento impossível de ser transposto.
E se como leitora também passei a crer, deve-se ao fato de que a perspectiva do amor é também reelaborada; antecipando-se às críticas no próprio corpo do texto – “Assim começaram os dias estonteantes cheios de clichês” –, o livro sugere que considerar clichê uma história de amor no romance contemporâneo é uma visão ultrapassada. Ifemelu e Obinze se conhecem ainda jovens. São os dois adoráveis, inteligentes, pairando muito acima de todos que os rodeiam. A expansividade dela e o jeito tranquilo dele se complementam num ideal de integridade que não será desconstruído, apesar das escolhas – muitas vezes duvidosas – dos dois ao longo do romance.
Obinze é obcecado pela cultura norte-americana, mas é Ifemelu quem vai para lá. Um fato traumático separa-os. Depois, ele vai para Londres como imigrante ilegal e sua trajetória é um contraponto à dela.
No início do romance, Ifemelu é bolsista em Princeton, com cidadania norte-americana, autora de um blog de enorme sucesso que trata de questões raciais. O vai e vem no tempo desvela as razões por que a protagonista decide partir dos Estados Unidos quando aparentemente conseguiu ocupar o seu lugar. Essa voz negra, expressa no blog inserido de modo esparsado ao longo da história como um gênero dentro de outro, confirma as urgências dos temas tratados, autorizando as leituras por uma chave decolonial tão ao gosto da Universidade.
Quanto a mim, preferi desfolhar o romance quase como se as páginas estivessem coladas e, por isso, solicitassem o reconhecimento que a voz é um construto cujo abalo não cessa de se produzir, desmistificando estereótipos e gerando criando surpresas e alegrias. Talvez eu faça essa leitura porque ainda esteja parada naquela cozinha minúscula, num apartamento com vistas para os escombros de uma imensa casa colonial, onde, no telhado, às vezes aparecem dois pavões. Nessa cozinha, Obinze, muito sério, pergunta: “O que aconteceu nos Estados Unidos?” “Por que você cortou o contato comigo daquele jeito?”. E o que aconteceu é a história que está prestes a terminar, cujo desfecho pode fazer findar o longo outono das perplexidades, revelando os sentidos de casa como um lugar seguro.
Editora: Companhia das Letras – 520 págs – Valor médio: R$ 39,90
![O longo outono das perplexidades [por Milena Magalhães] sem titulo](https://www.portalilheus.com.br/wp-content/uploads/2021/04/sem-titulo.png)
Milena Magalhães é professora na área de literatura na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Amiga, colaboradora, e colunista do Portal Ilhéus, Milena assina a Coluna Hiato sobre Literatura, quinzenalmente publicada no Jornal impresso Portal Ilhéus.