Foi em Ibicaraí, num dia quente de sol, que vi o circo pela primeira vez. Cidade pequena, mas bastante movimentada, as micaretas de lá sempre foram famosas. Tem também a festa da cidade, as vaquejadas, as quermesses, as festas de clube, que atraiam sempre muita gente, de modo que no verão montavam-se parques de diversões e grandes estruturas para espetáculos em praça pública.
Naquele dia, uma kombi colorida passou em frente à casa de meus avós. Dei um salto sobre o balcão da venda. Tudo parecia ampliado, gigantesco. Artistas em pernas-de-pau passavam de um lado para o outro, outros no teto do carro, outros ainda cantavam e dançavam distribuindo volantes, convidando o público para o espetáculo de logo mais à noite. Uma explosão de cores. Meu coração acelerado quase saía pela boca quando o palhaço se aproximou e acertou um carimbo na minha mão. Que susto!
– Mostra esse carimbo pra entrar de graça, menino!
Olhei e lá estava o circo desenhado na pele da minha mão. Era possível enxergar o desenho de um circo, sim, por mais que os outros meninos e meninas dissessem que era só um borrão vermelho.
Meu avô resolveu me levar. E o medo de perder meu carimbo, minha entrada gratuita, minha passagem para a diversão? Banho, nem pensar! Minha tia teve que amarrar um saco na minha mão para me convencer a tomar uma chuveirada.
No Bairro Vermelho ficava a minha segunda casa. Com meus avós, Toinzinho e Arcanja, convivia boa parte das minhas férias. Ali, em sua venda, onde se encontrava de tudo, fumo de rolo, pão, milho, feijão, arroz, farinha, tudo à granel, cachaça, em diversas versões, jatobá, angélica, sucupira, cravo, canela… Ali, na venda de Toinzinho, aprendi as quatro operações, aprendi a contar moedas e cédulas e a usar a balança com seus pesos variados. E foi dali, da casa de meus avós maternos, que saí para a mais impactante experiência com a arte que tive até hoje.
O sol já estava se despedindo quando descemos a ladeira. Do topo, era possível ver a bandeira tremulando no alto do circo de lona azul e amarela. Mil luzes, mil cores e o meu coração saltitando de alegria. Na entrada, meu avô pegou um pacote de pipocas e um algodão doce. Só precisei mostrar a mão carimbada para entrar. Nos sentamos bem na frente, perto de tudo. Uma parede de madeira, bem baixinha, de uns trinta centímetros mais ou menos, separava o público do picadeiro, o palco. Do lado esquerdo, uma banda, formada por cinco ou seis músicos, animava o ambiente. À direita, alguns equipamentos que entrariam em cena durante o espetáculo: o globo da morte, um calhambeque bem velho… No centro, uma cortina de veludo, vermelha, com o mesmo desenho que eu trazia na mão estampado bem no alto.
Entre um número e outro, os dois palhaços entravam, para delírio da plateia. Eu ri tanto que cheguei a sentir dores na barriga e nem percebi quando a luz do sol foi substituída completamente pelos holofotes. Um homem vestido de fraque anunciava cada atração e lembrava a todo instante que, ao final, o público seria brindado com um drama, algo que ele deu o nome de Coração materno.
No intervalo de quinze minutos após os números circenses, eu não parava de falar, de pular de alegria. Comi uma maçã do amor, bebi uma gasosa, que dividi com meu avô, enquanto minha avó comeu amendoim torrado. Voltamos para o mesmo lugar, bem na frente.
Não lembro bem do drama que assisti, recordo que um dos palhaços fazia o papel da filha. Ele, como todo elenco, se limitava a contar uma história, revelando-nos o seu olhar sobre a trama: nenhuma afetação, nenhuma tentativa de nos convencer de que ali estava a filha e não o ator que também era o palhaço e vendia a maçã do amor no intervalo. Como disse, não lembro muito da história, sei apenas que me emocionei, assim como também sei que foi justamente ali que começou a minha vida no teatro.
Durante mais de um mês fui a quase todas as sessões e até vi alguns ensaios dos trapezistas e das bailarinas. Foram 40 dias intensos de muita alegria, seguidos de outros tantos dias de choro e desolação ao ver que o circo havia partido.
Hoje, 40 anos depois dessa experiência, vivo o drama de ver outro circo ser desmontado e se preparar para partir para sempre. Em 2013, montamos, na Avenida Soares Lopes, a Tenda Teatro Popular de Ilhéus. Mais que um espaço cultural, um sonho compartilhado com artistas, produtores, público. Um sonho que acabou. Preciso reavivar a memória, trazer de volta aquele menino de 40 anos atrás e quem sabe assim continuar sonhando, acreditando no carimbo do palhaço.
Foi em Ibicaraí, num dia quente de sol, que vi o circo pela primeira vez. Cidade pequena, mas bastante movimentada, as micaretas de lá sempre foram famosas. Tem também a festa da cidade, as vaquejadas, as quermesses, as festas de clube, que atraiam sempre muita gente, de modo que no verão montavam-se parques de diversões e grandes estruturas para espetáculos em praça pública.
Naquele dia, uma kombi colorida passou em frente à casa de meus avós. Dei um salto sobre o balcão da venda. Tudo parecia ampliado, gigantesco. Artistas em pernas-de-pau passavam de um lado para o outro, outros no teto do carro, outros ainda cantavam e dançavam distribuindo volantes, convidando o público para o espetáculo de logo mais à noite. Uma explosão de cores. Meu coração acelerado quase saía pela boca quando o palhaço se aproximou e acertou um carimbo na minha mão. Que susto!
– Mostra esse carimbo pra entrar de graça, menino!
Olhei e lá estava o circo desenhado na pele da minha mão. Era possível enxergar o desenho de um circo, sim, por mais que os outros meninos e meninas dissessem que era só um borrão vermelho.
Meu avô resolveu me levar. E o medo de perder meu carimbo, minha entrada gratuita, minha passagem para a diversão? Banho, nem pensar! Minha tia teve que amarrar um saco na minha mão para me convencer a tomar uma chuveirada.
No Bairro Vermelho ficava a minha segunda casa. Com meus avós, Toinzinho e Arcanja, convivia boa parte das minhas férias. Ali, em sua venda, onde se encontrava de tudo, fumo de rolo, pão, milho, feijão, arroz, farinha, tudo à granel, cachaça, em diversas versões, jatobá, angélica, sucupira, cravo, canela… Ali, na venda de Toinzinho, aprendi as quatro operações, aprendi a contar moedas e cédulas e a usar a balança com seus pesos variados. E foi dali, da casa de meus avós maternos, que saí para a mais impactante experiência com a arte que tive até hoje.
O sol já estava se despedindo quando descemos a ladeira. Do topo, era possível ver a bandeira tremulando no alto do circo de lona azul e amarela. Mil luzes, mil cores e o meu coração saltitando de alegria. Na entrada, meu avô pegou um pacote de pipocas e um algodão doce. Só precisei mostrar a mão carimbada para entrar. Nos sentamos bem na frente, perto de tudo. Uma parede de madeira, bem baixinha, de uns trinta centímetros mais ou menos, separava o público do picadeiro, o palco. Do lado esquerdo, uma banda, formada por cinco ou seis músicos, animava o ambiente. À direita, alguns equipamentos que entrariam em cena durante o espetáculo: o globo da morte, um calhambeque bem velho… No centro, uma cortina de veludo, vermelha, com o mesmo desenho que eu trazia na mão estampado bem no alto.
Entre um número e outro, os dois palhaços entravam, para delírio da plateia. Eu ri tanto que cheguei a sentir dores na barriga e nem percebi quando a luz do sol foi substituída completamente pelos holofotes. Um homem vestido de fraque anunciava cada atração e lembrava a todo instante que, ao final, o público seria brindado com um drama, algo que ele deu o nome de Coração materno.