O escritor e dramaturgo Romualdo Lisboa em mais uma crônica publicada no Portal Ilhéus, nos conduz por mais uma deliciosa história pelo interior de Ibicaraí
Quando Zenaide chegou, Padre Gidalto já estava besuntando a velha Maria dos Anjos. Sorrateiramente ela se posicionou ao lado da cama, respirou fundo, tentando aplacar o cansaço da subida; é que dona dos Anjos morava no Alto da Caixa D`água.
Zenaide morava na Rua Central com sua mãe, Dona Zifinha. Viúva há mais de 10 anos, a velhinha era respeitada por toda a comunidade religiosa de Ibicaraí. Sempre vestida de preto, seu rosto sisudo trazia marcas de uma vida dura, do trabalho forçado nas roças de cacau ao vai-e-vem, depois de casada, até o rio Salgado, onde lavava roupas de ganho para ajudar nas despesas da casa. Foi dona Zifinha quem inseriu Zenaide nas atividades da Igreja e foi com ela também que pegou gosto de cantar. Era uma beleza ouvir mãe e filha cantando na missa. Dona Zifinha foi a fundadora do Coral Maria Santíssima e passou para a filha a regência do mesmo, quando a voz começou a ficar fraca como as pernas.
O sol anunciava o dia 1º de julho de 1951. Na noite anterior, Zenaide foi dormir tarde, ensaiando para a missa de domingo. Quando estava saindo da casa paroquial, foi interpelada pelo Padre.
– Zenaide, preciso de você amanhã cedinho. Vamos fazer a extrema unção de dona dos Anjos. – falava ajeitando a batina.
– Vixe! Tá ruim mesmo, dona Maria dos Anjos? – perguntou Zenaide, pensando na dureza que seria acordar cedo no dia seguinte.
– Morre-não-morre! – disse o padre.
Assim, combinaram o encontro para as seis da manhã, ali mesmo na casa paroquial. Zenaide dormiu depois de um copo de leite quente, duas ou três orações ao pé da cama e mais duas ou três depois de deitada para aplacar os pensamentos libidinosos de jovem de 16 anos cheia de hormônios.
Os anjos de asas longas e alvas chegaram em revoada. Uns trinta, ou mais. Zenaide tentava se concentrar na música, não podia errar nenhuma nota. Cantava e cantava como nunca cantou. Sua voz era tão viva e cristalina que tomava todo o céu. Os anjos a cercaram e de repente estava voando. Ela também tinha asas, agora. E sua voz não saía mais de sua boca e sim de seu pensamento. Era uma sinfonia. Zenaide, inebriada com a música e com o movimento dos anjos, se deixa levar até que um deles a olhou fixamente. Primeiro ela tentou sorrir, mas o anjo fez uma cara de quem não estava gostando de nada daquilo. Ela apurou ainda mais o olhar e viu.
– Padre Gidalto! – gritou pulando da cama. – Meu Deus, perdi o horário. O Padre vai ficar uma onça.
Vestiu-se rapidamente, bebeu um gole de café e deu um beijo em dona Zifinha. Da sua casa até a casa paroquial era um pulinho. Bateu palmas. Nenhuma resposta. Daí a pouco sai de lá de dentro dona Viridiana.
– Zenaide, minha filha, o Padre saiu daqui já tem quase meia hora. Se perdeu no sono? – perguntou e riu a velha de mais ou menos setenta anos.
– Me perdi no sonho, dona Viridiana. Deixa eu correr.
E correu mesmo. Sabia que ia encontrar o padre no meio do sacramento e que ia ouvir poucas e boas por causa do atraso. Mas também, tantos anjos, tão bonitos. Cada um mais bonito e forte que o outro. E por que ele, que estava lá, disfarçado de anjo, não avisou logo do atraso? A essa altura ela já estava passando pela feira, depois de percorrer toda a Rua dos Bandeirantes. Parou e pensou se valeria a pena seguir pela Rua 2 de Julho ou pegar a Rua Siqueira Campos. Dúvida atroz, porque a Siqueira Campos era o caminho mais rápido até a casa de dona Maria dos Anjos, em compensação era também a “rua do baixo meretrício” e não ficava bem para uma jovem da igreja transitar por ali. Imagina ser abordada por uma daquelas moças, que na noite passada tinha se deitado com dois ou três anjos, quer dizer, homens diferentes? Imagina se deparar com um desses homens, fortes, musculosos, seminus, saindo de um desses prostíbulos, com olhar lascivo e cheirando a sexo?
Zenaide pensava isso tudo ao mesmo tempo que caminhava pela Rua Siqueira Campos. O véu cobrindo o rosto, as mãos cruzadas no peito, o coração pulando e os anjos, os anjos. Correu, correu. Subiu a ladeira do cemitério correndo.
À porta da casa de dona Maria uma pequena multidão estava instalada. Zenaide respirou fundo e, com os cotovelos, foi abrindo caminho até chegar no quarto. O Padre Gidalto estava em pleno rito. A extrema unção ou unção dos enfermos é um dos ritos romanos só revisados em 1972 pela Igreja Católica. Na Ibicaraí de 1951 a extrema unção era realizada conforme os hábitos antigos, em que se entoavam cantos e além do óleo, benzido na Sexta-feira Santa pelo Bispo, usava-se a aspersão de água benta.
Até dona Maria dos Anjos sorriu, quando o Padre Gidalto deu um banho de água benta em Zenaide. No fim, ficou tudo bem. A voz de Zenaide ecoou na rua inteira e até os mais incréus fizeram silêncio para ouvi-la. Dos Anjos morreu no mesmo dia, 1º de julho de 1951 e agora, 70 anos depois, Zenaide Nilo dos Santos Gama se juntou a ela. Morreu Zenaide e com ela um tanto da minha infância. A Covid-19 não permite a merecida despedida, por isso, estas recordações inventadas fazem dela tão viva e presente quanto merece.
* Romualdo Lisboa é dramaturgo, diretor e ator. Um dos fundadores do Teatro Popular de Ilhéus, grupo de pesquisa continuada fundado em 1995.