Você sabe o que é o marco temporal? A professora Alessandra Simões, em mais um texto de opinião, fala sobre o marco temporal e como ele impacta os povos indígenas
Nas últimas semanas, os povos indígenas do Brasil deram um show de união, solidariedade, política e resistência. Em torno da luta contra o “marco temporal”, milhares de pessoas das mais variadas etnias passaram dias e dias acampadas na esplanada em Brasília, tendo como ponto máximo do movimento a Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, que reuniu cerca de 5 mil mulheres de mais de 172 etnias.
O “marco temporal” é uma ideia um tanto absurda, que gira em torno da falsa tese de que os povos indígenas só poderiam reivindicar a posse de terras onde já estavam a partir de 5 de outubro de 1988, dia em que entrou em vigor a Constituição Brasileira, a mesma carta magna que garante a criação das chamadas Terras Indígenas (Tis), no artigo 231, nos territórios que pertencem aos povos indígenas. Assim, o tal “marco temporal” ignora a certeza de que estes são os povos originários das terras brasileiras, roubadas há 500 anos pelo governo português. Pode parecer um tempo longínquo, mas foi o suficiente para repassar estas terras, ao longo das gerações seguintes e com documentos forjados por uma legalidade artificialmente construída em cartórios. Tudo isto para destinar os quilômetros e quilômetros de terras férteis, banhadas por águas puras, a meio punhado de famílias que para cá vieram ou que aqui nasceram, dando continuidade à tradição da roubalheira que erigiu a nova colônia.
![Colunista│MARCO TEMPORAL JAMAIS [por Alessandra Simões] indigenas protestam em brasilia segurando a constituicao fabio nascimento mni](https://www.portalilheus.com.br/wp-content/uploads/2021/10/indigenas-protestam-em-brasilia-segurando-a-constituicao-fabio-nascimento-mni.jpg)
A tese do “marco temporal” também ignora que estes povos foram expulsos de suas terras, sob extrema violência, assassinatos e estupros, e em função do desmatamento das florestas e pela proliferação de doenças, portanto, como poderiam estar lá no ano da Constituição? Algumas destas terras foram reconquistadas pelos povos originários a partir de muita luta, o que resultou no assassinato de várias lideranças indígenas. E muitas destas terras foram homologadas, reconhecidas e mapeadas pelo trabalho competente das equipes da Funai a partir da identificação do significado destes territórios para determinada organização social a partir de laudos concretos e juridicamente embasados. “Ninguém está reivindicando a praia de Copabacana”, como afirmou certa vez Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (Isa) ao portal Uol.
É claro que a bancada ruralista e instituições ligadas à agropecuária defendem o “marco temporal”, afinal elas reúnem os descendentes diretos de toda esta corja de ladrões, que vive única e exclusivamente da exploração fundiária, a partir do desmatamento depredatório e do envenenamento das águas, para lucro próprio e divisas bastante abstratas para o país. Ah, sim, e sob o bordão para lá de nojento: o agro é pop. Do outro lado, povos indígenas temem perder direito a áreas em processo de demarcação, reconhecidas por inúmeros órgãos e entidades nacionais e internacionais, e sistematizadas por laudos cuidadosamente construídos por uma Funai atualmente desmantelada pelo governo federal. É claro que a pauta só poderia ganhar força no atual governo federal, declaradamente defensor do genocídio dos povos negros e indígenas e da entrega total dos recursos naturais do Brasil à exploração econômica mundial.
Assim, quem se alia às teses ultraconservadoras e entreguistas deste governo acaba contribuindo com seu quinhão para o afundamento completo do país, cada vez mais rumando em ritmo acelerado para o fundo do poço, como mostra a inflação ululante, a fome e a miséria generalizadas e comemoradas pelos bozos de plantão no último e deprimente dia 7 de setembro. O governo de Santa Catarina, então, resolveu dar sua parcela de contribuição para o titanic nacional, por meio de uma ação de reintegração de posse que chegou ao STF movida pelo Estado contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem indígenas Guarani e Kaingang. A controvérsia é mais um desdobramento das discussões em torno do tal “marco temporal”, que iniciaram em 2017, quando houve um parecer da Advocacia-Geral da União a favor da permanência de povos originários que estavam na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, desde a promulgação da Constituição de 88, o que foi maliciosamente interpretado com um possível modelo para o tal do “marco temporal”.
A notícia mais recente, entretanto, é que depois de semanas em andamento do processo, com a presença dos movimentos indígenas acampados em Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu não decidir. O ministro Alexandre de Moraes pediu vistas e, com isso, o julgamento ficou suspenso até que o magistrado decida emitir seu voto. Nesta última sessão, o ministro Nunes Marques, inclusive, votou a favor da manutenção da tese do “marco temporal” com a desculpa chula de que a expansão das terras indígenas poderia ocorrer “infinitamente”. Foi o primeiro voto da casa a divergir do relator, ministro Edson Fachin, para quem ficou claro que os direitos territoriais originários dos índios existem antes da promulgação da Constituição. Caso Moraes demore, ficam abertas as portas para que o Congresso resolva a questão antes, a partir de outro absurdo, o Projeto de Lei 490/2007, que tramita na Câmara dos Deputados. Além de inserir a tese do “marco temporal” na legislação, o texto proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e ainda permite a exploração de territórios indígenas por garimpeiros. O PL, que também flexibiliza o contato com povos isolados, já passou pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara e aguarda para ser votado no plenário.
O que isto tudo tem a ver com Ilhéus? Basicamente, tudo. Afinal, aqui está localizada a TI Tupinambá de Olivença, que tem 47 mil hectares e população estimada em 8,5 mil indígenas (fonte: https://terrasindigenas.org.br). Desde abril de 2009, quando foi publicado o relatório de identificação e delimitação de sua terra indígena pela Funai, os Tupinambá de Olivença aguardam a assinatura da Portaria Declaratória de seu território, etapa que precede a demarcação física e a homologação da área, assim como a indenização de eventuais detentores de títulos de boa-fé. Apesar de todos os encaminhamentos oficiais do projeto, a região continua sendo alvo de intensas disputas por parte de fazendeiros, entre outros interessados, e várias lideranças indígenas já foram assassinadas lutando por seus direitos. A todo momento, o povo tupinambá é ameaçado em seus direitos, como no caso recente em que um hotel de luxo da empresa Vila Galé, de Portugal, pretendia construir um resort em área da TI, aliás, um local de extrema vulnerabilidade ecológica que seria destruído para o bel prazer dos turistas.
Na luta pelo reconhecimento de seu território, desde o início dos anos 2000, e de inúmeras pautas importantes para a causa indígena em todo o país, os Tupinambá de Olivença também se juntaram à batalha contra o “marco temporal”. Alguns de seus representantes foram à Brasília e muitas de suas aldeias se reuniram para fazer caminhadas e manifestações contra o marco aqui na região, graças ao trabalho articulado de importantes lideranças locais. O desfecho do “marco temporal” será mais um importante capítulo para a luta indígena na região e no Brasil todo. Oxalá que haja realmente uma reviravolta e que se encerre de vez esta discussão completamente infundada. Os Tupinambás estarão sempre em alerta e de plantão para mostrar que quem estava aqui há quinhentos anos eram eles, os verdadeiros guardiões da mãe terra. Eles que zelavam pela biodiversidade, muito antes da invasão portuguesa e de muitos de nós que vivemos aqui atualmente, desfrutando das últimas maravilhas naturais do sul da Bahia que ainda resistem ao avanço da especulação turística e imobiliária, da exploração latifundiária e das gigantescas corporações internacionais do minério.
Alessandra Simões, residente em ilhéus, é jornalista, artista plástica, crítica de Arte e professora da UFSB