O professor André Rosa nos conduz por mais um texto delicado, porém cheio de detalhes, publicado em sua coluna na 17ª edição do Jornal Portal Ilhéus
Por André Rosa.
Hoje acordei com nostalgias, lembranças de pessoas que se foram e também de uma cidade que se esvaí na memória e já não existe fora do pensamento. Me pego revendo fotografias amareladas pelo tempo, objetos empoeirados, livros há muito lidos, que me levam à uma espiral do que já foi e do que poderia ter sido.
Quantas palavras não ditas, quantos gestos inacabados, quantos abraços que deveriam ser dados, quantas pessoas perdidas nas esquinas por um minuto talvez. Tantas casas e ruas modificadas. Amizades que perduraram menos que mereciam, levadas pela distância física e pelo fenômeno da morte sempre inesperada.
Revi minha existência inteira, esfumaçada diante da xícara de café. Essa quase angústia de viver a meio caminho para nenhum lugar. Não raro bate um não-sei-o-quê no coração, com se algo faltasse e pedisse passagem no giroscópio das emoções. Balanço a cabeça em meio sorriso (talvez tudo isso não valha a pena) e resolvo, enfim, lavar a louça de ontem e abrir a porta para o gato que retorna das peripécias, na madrugada sobre telhados alheios. Nos olhamos cúmplices, enquanto lhe colocava a ração no prato. Não sabemos exatamente o que nos cabe, mas seguimos adiante. O gato não tem nome, sempre me cobram isso. Pensei em alguns nomes esquisitos, mas não sei se ele se importa com o que não seja ração e noite. Acho que ele fica bem assim mesmo, sem nome e sem horários, felino por inteiro.
Antes não havia muros para esses lados, eles foram chegando aos poucos, dia após dia. Depois chegaram os gatos em bandos. Vieram com a cidade: as luzes e os esgotos. Trouxeram seus miados e vontades. Um deles me adotou em tons de marrom, um quê de amizade sem rotina. Sempre me admiro do seu retorno quando quer. Chega e vai na rotação dos seus instintos.
Na xícara o café esfria, não decido se bebo. Me interessa mais a xícara, a sua companhia. Da casa ao lado vem os primeiros ruídos do dia: bater de portas, latidos, risadas matutinas. A vida se desdobra nos meus ouvidos de inquilino. Nunca os vi pessoalmente, os vizinhos recentes, mas me parecem próximos nas manhãs por detrás do muro. A vizinha anterior, uma senhora de idade avançada, sugeriu abrir uma porta no muro. A morte veio antes e a porta se foi com ela. Pena que pessoas e portas deixam de existir. Quem sabe nos sentimos melhor sob a proteção dos muros.
Os gatos, esses não. São indiferentes aos muros e não bebem café, tampouco em xícaras.