“As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa.”
Por Alessandra Simões:
“As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa.” Esta máxima, do poeta Paulo Leminski, revela a natureza paradoxal da arte: ela é inútil, porém, essencial. Nos dicionários, útil significa a utilização proveitosa de algo, o serviço prestado por alguém ou algo, serventia. Em caminho oposto, a arte é inútil, campo da liberdade total, da subversão, o lugar de onde se pode falar sobre tudo, da forma que se achar melhor. Não exijam nada da arte, não exijam nada dos artistas. Como já falou o escritor Oscar Wilde, “toda arte é completamente inútil”. Mas para as pessoas sem imaginação realmente deve ser difícil alcançar a dimensão profundamente libertária da licença poética.
Nossa sociedade é excessivamente utilitarista para abrir mão do controle e da razão e se lançar no voo infinito da criatividade. Está sempre às voltas com a mesquinharia, os pequenos poderes, em nome do cumprimento de sua eficiência. O problema é quando os governantes consolidam a ideia da inutilidade da arte, porém manipulando seu sentido de forma pejorativa, a partir de uma visão capitalista. Marginal e não essencial, a arte não serviria para nada. Afinal, ela não segue a lógica do lucro, muito pelo contrário: crítica e revolucionária, combate as coisas como elas estão, isto é, os privilégios para os ricos e a lei para os pobres. E assim a arte fica no final da fila das prioridades, a prima pobre das políticas públicas que, por trás de discursos demagogos, acabam sempre atendendo ao interesse privado. Este é o modus operandi de nossa sociedade capitalista: o utilitarismo para o padecimento da criatividade e do amor.
![Colunista│DA INUTILIDADE DA ARTE [por Alê Simões] teatro ilheus tpi](https://www.portalilheus.com.br/wp-content/uploads/2021/09/teatro-ilheus-tpi-1160x870.jpg)
Um dos símbolos máximos deste desprezo pelos artistas foi a ruína completa da Tenda do Teatro Popular de Ilhéus, o tradicional circo azul e amarelo que por tantos anos alegrou a avenida Soares Lopes. Assistir sua cobertura desabar durante as últimas chuvas foi devastador. Mas nada muito diferente do que já se esperava. Situada à beira-mar, desde 2013, a estrutura sempre esteve sujeita ao sol, chuvas e fortes ventos, e os efeitos da maresia já eram vistos nostalgicamente na deterioração de seus mastros e nos buracos das lonas cujas goteiras às vezes impediam a continuidade dos espetáculos. Afinal, sempre foram ínfimos os apoios por parte do município a este coletivo que é uma das mais importantes referências no cenário das artes cênicas nacional e internacional, e que conta basicamente com apoio de programas em nível estadual e com a renda gerada pela bilheteria.
E não é exagero dizer que o TPI se constitui como uma das mais importantes expressões no teatro brasileiro. Seus quase trinta anos de existência revelam um trabalho sólido, maduro, agraciado com inúmeros prêmios em reconhecimento à qualidade de sua permanente pesquisa nas linguagens cênicas. Com um trabalho expressivamente político, já chegou a derrubar prefeito corrupto com uma dramaturgia para lá de hamletiana. Afinal, este filho da terra, que leva o nome da cidade pelo Brasil e mundo afora, sempre lutou por uma Ilhéus melhor. Com a queda da Tenda, morre um pouquinho de cada ilheense.
Mas muitas pessoas parecem não perceber isto, e o mais impressionante é a falta de constrangimento geral pelo ocorrido. Uma nota de pesar no instagram da prefeitura não minimiza a mancha descarada de uma cidade que não acolhe seus artistas. Gritos de socorro do TPI até foram atendidos temporariamente pelo município, como agora com a necessidade urgente de se achar um local provisório para levar equipamentos e acervo enquanto o grupo tenta achar um novo local para se instalar. Porém, apoio público verdadeiro e efetivo, com verba e infraestrutura contínuas, e no mínimo uma sede permanente, parece ser uma realidade ainda distante. Aliás, não está em curso um debate público sobre o uso da Avenida Soares Lopes? Não seria o momento ideal para que a prefeitura finalmente tomasse uma atitude de vanguarda? Por que a tenda não pode ser construída no mesmo local e se tornar finalmente um cartão postal oficial da cidade reconhecido e apoiado pelo município? Ah, claro, pontes e avenidas são muito mais úteis.
Mas, como sempre, nada é alheatório. A falta de apoio às artes e à cultura é um projeto destinado a colocar interesses privados e lucros acima de tudo, acima da identidade de um povo. E isto está circunscrito ao próprio desenho da cidade. A avenida Soares Lopes é habitada e frequentada majoritariamente pela elite branca ilheense; e neste pacto urbanístico ficam implícitos a quem devem ser destinados os espaços da cidade. Basta ver as diferenças como são tratadas as regiões sul e norte. Na Soares, os adeptos do beach tennis, ou sabe-se lá que outro estrangeirismo é usado para definir o esporte do momento que ali se pratica, continuam tocando suas vidas fitness ao lado das ruínas da Tenda. A cada raquetada, normalizam o inormalizável.
O espaço vazio deixado pela Tenda continua ali, como um espectro que denuncia o ocaso do investimento cultural em Ilhéus. Como muitos coletivos artísticos, o TPI sofreu os efeitos devastadores da pandemia desde o fechamento de sua sede. Seu funcionamento, assim como de qualquer espaço cultural, demandava grande investimento em manutenção. Em “tempos normais”, o grupo contava com os recursos da bilheteria para pequenos investimentos, mesmo que este dinheiro nunca tenha sido suficiente. Agora, nem mesmo a bilheteria existe mais. E não foram as chuvas, os ventos e a maresia que adiaram o sonho da sede própria do TPI. Foi o descaso público.
Mas o grupo resiste. Em suas redes, as mensagens de otimismo e de resistência reacendem o caminho do sonho. Apesar de tempos tão sombrios, o TPI se mantém ativo com inúmeras ações na internet. Acena para a população de Ilhéus que o espetáculo não pode parar, que o sonho não acabou. Como disse Manoel de Barros, o poeta que valorizava as insignificâncias, as “coisas que não levam a nada têm grande importância”. E assim, os artistas do TPI mostram que a inutilidade da arte vai justamente no sentido oposto ao desta sociedade obcecada pelo consumo, pela produtividade, pela pressa e pela eficiência. Eles reafirmam que há milagres por trás da aparente inutilidade da arte: a poesia, o sonho, a verdade, a transformação, a justiça e a paz. Vamos torcer para que o Teatro Popular de Ilhéus alcance sua re-existência, comprovando mais uma vez que a arte ainda é o refúgio da esperança em uma sociedade arruinada pelo utilitarismo e pelo dinheiro.
Alessandra Simões, residente em ilhéus, é jornalista, artista plástica, crítica de Arte e professora da UFSB