A professora e artista plástica, Alessandra Simões, mais uma vez nos envolve em sua coluna publicada no Jornal Portal Ilhéus, com texto recheado de posicionamento
Por Alessandra Simões:
Amiga, infelizmente, você faleceu e entrou para a sombria estatística de mais de meio milhão de mortos por Covid no Brasil. Foi um domingo amargo e joguei flores no mar em um ritual particular lá na praia do sul. Você tinha apenas 46 anos, e era uma mulher linda: alta, rosto arredondado, olhos puxados, cabelos escuros, longos e ondulados, que delineavam sua beleza fronteiriça entre indígena e asiática. Você estava no auge de sua carreira e era amada por muitas pessoas que admiravam sua inteligência sem arrogância. Fiquei dilacerada por acompanhar as notícias de sua luta, por quase cinquenta dias, em uma UTI em Brasília; batalha inglória contra a força desta doença que destruiu cada canto sagrado de seu corpo. Foram dias longos em que acompanhei à distância os boletins médicos reproduzidos por seu companheiro, diligentemente ao seu lado escrevendo cartas de amor, fazendo lista de músicas preferidas e anotando seus últimos pedidos, entre eles, o de ter suas cinzas jogadas aos pés de um ipê.
Desde o início da pandemia, tenho pensado muito sobre minhas amizades mais antigas. Acho que a pandemia fez isso com muita gente. Mais do que nos forçar a refletir sobre os futuros possíveis deste planeta destruído pela ânsia capitalista, a pandemia nos colocou frente a frente com as amizades do passado. Pelas redes, encontramos o pessoal da universidade, da adolescência, da infância. Pelo menos, comigo foi assim. De praticamente todos os momentos mais marcantes de minha vida reapareceram pessoas queridas, uma camaradagem que o tempo nunca apagou. No caso das amigas mulheres, a intimidade se manteve em sua forma perene.
Como dizem por aí, para lembrar é preciso esquecer. No caso das amizades profundas, não esquecemos; apenas adormecemos nossas lembranças. E, amiga, você era uma dessas pessoas. Eu não a via pessoalmente há mais de dez anos, nos falamos algumas poucas vezes ao longo deste tempo. Mas lembro bem, mesmo entre memórias turvas, dos nossos tempos de adolescência juntas, das conversas, dos pactos, das aventuras, tudo o que compunha a desinteressada intimidade que duas amigas podem desenvolver nesta época da vida. Então, sua partida me fez lembrar deste tempo em que as amizades entre nós mulheres se firmavam a partir de um amor quase incondicional, quando muitas de nós revezávamos até mesmo nossas paixões, com ou sem grandes arroubos de ciúmes ou inveja.
Quando eu soube que você estava internada em estado grave, meu pensamento voltou ao tema das amizades. Eu já vinha pensando há algum tempo como é mais difícil hoje encontrar novas amigas. Especialmente quando vamos ficando mais velhas, as chances para que a intimidade fraternal floresça parecem diminuir. Afinal, muitas pessoas estão mais preocupadas em firmar batalhas e negociações simbólicas por meio de relacionamentos em que o interesse está acima da amizade verdadeira.
Eu trabalho em um ambiente de trabalho em que as disputas são altíssimas e cobram exatamente o preço das possíveis amizades, que não estão acima das ideologias. E como o trabalho ocupa grande parte do meu dia, muitas vezes, me sinto profundamente só. A contradição é que trabalho em uma universidade pública, a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), onde todas as pessoas que ali trabalham (pelo menos assim eu entendo) acreditam no compromisso da instituição com a educação emancipadora, a equidade, o desenvolvimento regional e a participação social. E ainda trabalho no campo das artes, espaço ainda mais suscetível às afetividades.
Mas o bicho humano é esquisito e as coisas nem sempre saem como manda o figurino. Eu ansiava profundamente por estar em uma universidade pública, onde finalmente eu poderia, além de lecionar, me dedicar à pesquisa e à extensão (o que em grande parte das universidades particulares não é possível). Antes de enfrentar a penosa saga dos concursos, não havia me dado conta de que neste mesmo ambiente no qual se reúnem pessoas que lutam por um bem comum, educação pública de qualidade, haveria concorrência, deslealdade, panelinhas, conspirações; tudo em nome de um quebra-cabeça de ideologias e egos particulares que geram desentendimentos agravados pelo cansaço, excesso de trabalho e o distanciamentos dos familiares e círculo de amizades (afinal, a maioria de nós é “forasteiro”, na definição dos ilheenses para os que habitantes que não são nascidos aqui).
Mas este é só mais um capítulo de minha vida. E nele há também os clarões das exceções. E foi nestes últimos tempos que conheci uma nova amiga, por quem eu tenho um amor tão grande que chega a ser indescritível.
É a artista Driely Alves, também uma forasteira, palhaça profissional, a Madame Chumaço, mulher negra, moldada por uma graça tão linda que por onde ela passa os caminhos se tornam mais coloridos. Ela despertou em mim a ligação antiga e sagrada que eu tinha com a palhaçaria, também adormecida pelo esquecimento dos tempos. Assim, eu virei a palhaça Aliás. Junto com a Mariaji Salvador, outra amizade fantástica, multiartista paulistana que vive em Ilhéus e que encarna a palhaça Maga, nós formamos o trio As Forasteiras, com o qual no divertimos muito antes de a pandemia jogar momentaneamente um pequeno balde de gelo em nossas trapalhadas. Atualmente, elas continuam alegrando a vida com as lives do grupo As Madalenas e palhaceatas com outros tantos palhaços da cidade.
Bom, querida amiga, tudo isso para lhe dizer que não é possível suportar a dor da perda de uma pessoa querida se não estivermos cercadas por muito amor. Ainda mais quando vemos tantas vidas perdidas que poderiam ter sido salvas por uma vacina. É, você poderia estar aqui, não fosse tamanha negligência do governo federal diante desta terrível pandemia. Precisamos nos cercar de muito amor e de muita alegria para nos proteger da violência e da pulsão pela morte imposta pelos grupos que estão no poder. Sim, alegria também é remédio contra estes tempos tão sombrios, como nos mostra Madame Chumaço com sua eterna disponibilidade para dizer sim. Fique em paz, minha amiga, nos céus e aos pés de um ipê florido no planalto central. Enquanto nós aqui continuaremos na luta, seja por mais vida, saúde, justiça e felicidade.